O transporte público gratuito é possível?

Ideia que serviu de estopim para os protestos que tomaram o país, o transporte público gratuito já foi adotado em diversas cidades de pequeno porte. O grande teste de fogo é provar sua viabilidade nas grandes metrópoles

Ônibus em Colomiers na França

Protestos varreram várias das principais cidades do Brasil durante todo o mês de junho. A principal bandeira levantada pela multidão foi a queda nas tarifas de ônibus, que haviam subido em muitas capitais. Mas, segundo os organizadores dos protestos, o objetivo final era instaurar o passe livre — tornar gratuitos todos os meios de transportes públicos. Apesar do sucesso em reduzir a tarifa, quais são as chances reais de implantar a tarifa zero em cidades como Sao Paulo e Rio de Janeiro, que transportam milhões de passageiros por dia?

Experiências bem sucedidas — Cinco meses antes de os protestos estourarem no Brasil, a prefeitura de Tallinn, capital da Estônia, aboliu as tarifas de todo o transporte público que percorre a cidade. Segundo as regras implantadas, qualquer cidadão pode  viajar quantas vezes quiser, sem desembolsar nada, nas linhas de ônibus que cortam a cidade. Os habitantes de Tallinn começaram a se habituar com o novo tipo de transporte gratuito e a deixar os carros em casa — o número de automóveis nas ruas caiu 9% nos primeiros meses.

Tallinn não é a primeira cidade a instaurar o transporte público grátis de maneira irrestrita — é apenas a maior. Com mais de 420.000 habitantes, a capital trouxe à tona o debate sobre a possibilidade de cidades grandes darem espaço para o passe livre. Os motivos para esse tipo de iniciativa são vários, desde tornar o transporte mais acessível a todos até diminuir o uso de carros, reduzindo a poluição e o trânsito. A dúvida é se o projeto é sustentável financeiramente, pois o dinheiro que deixa de vir das tarifas tem de sair do orçamento da prefeitura ou de outra instância do poder público.

Grandes ideias, pequenas cidades — Em cidades menores, o modelo gratuito de transporte público tem se mostrado possível, com diversos exemplos pelo mundo. Em Colomiers, na França, por exemplo, os 33.000 habitantes não pagam nada para andar nas poucas linhas de ônibus da cidade — e isso desde a década da de 1970. Ao longo dos anos, outras doze áreas francesas copiaram o modelo (em Aubagne, ele ficou conhecido como Liberdade, Igualdade e Gratuidade). Isso é possível por causa do pequeno número de linhas que essas cidades têm, que praticamente não compensa o gasto para manter uma estrutura de cobrança de tarifas.

Nos Estados Unidos, o transporte também é gratuito em pequenas cidades como Bozeman, na Carolina do Norte, e Commerce, na Califórnia. "Todos os sistemas de transporte gratuitos nos Estados Unidos estão ou em pequenas áreas rurais e urbanas ou em comunidades universitárias. É muito fácil para uma área urbana pequena com ônibus que só transportam um terço de sua capacidade máxima acomodar um aumento de 100% nos serviços de transporte", diz Joel Volinski, diretor do Centro Nacional de Pesquisa de Trânsito dos EUA na Universidade da Flórida do Sul, em entrevista ao o site de VEJA. Até o Brasil possui um exemplo: a cidade de Agudos não cobra pelo uso de seus ônibus desde 2003.

Meio termo — Cidades maiores costumam achar soluções de meio termo. Perth, na Austrália, com quase dois milhões de habitantes, instituiu ônibus gratuitos apenas em seu centro comercial. Isso acaba com o trânsito nessa área, mas no resto da cidade o transporte é pago. Outras cidades possuem apenas algumas linhas de ônibus gratuitas ou dias especiais em que o transporte não é cobrado, normalmente patrocinados por alguma empresa. É o que acontece em Londres, por exemplo, onde uma companhia de bebidas paga pelo metrô de todos os cidadãos na noite de ano-novo.

Ficou no papel — Nas grandes metrópoles, um sistema realmente abrangente de transporte gratuito nunca foi tentado, mas já foi planejado. A cidade de Nova York, por exemplo, já teve um projeto desenhado. Em 1965, o advogado Ted Kheel propôs a ideia de ônibus e metrôs gratuitos, bancada pelo aumento nas taxas de carros que trafegam por Manhattan. O projeto nunca foi adiante.

No Brasil, o próprio PT — que hoje é alvo dos protestos —, defendeu a ideia do passe livre em São Paulo. Durante o governo Luiza Erundina, no fim da década de 80, o partido propôs que o dinheiro necessário para a gratuidade do transporte saísse de um aumento no IPTU. O projeto não passou na Câmara Municipal.

Nos dois casos, os projetos esbarraram na dificuldade de arranjar verbas e na necessidade de aumentar impostos para financiar a empreitada. "É improvável que uma cidade grande com um sistema de transporte largamente utilizado torne seu uso gratuito. Pela simples razão de que essa política levará a uma utilização maior do serviço e a cidade precisará ampliar muito o número de veículos e operadores para responder à demanda. O sistema não apenas perderia a renda que estava recebendo, como também precisaria de mais dinheiro para pagar pela capacidade adicional", diz Joel Volinski. É justamente por causa dessas dificuldades que a tentativa de Tallinn tem chamado tanta atenção e está sendo observada de perto por diversas cidades ao redor do mundo.

Experimento europeu — Tallinn é a primeira capital europeia a tentar implantar um sistema gratuito de transportes. Desde janeiro deste ano, não cobra de seus habitantes pelo uso de ônibus e bondes. Os turistas e visitantes têm de pagar 1,60 euros — e é aí que mora o segredo do projeto.

Para ter acesso ao direito de usar o sistema de graça, as pessoas que moram na cidade devem mudar oficialmente seu domicílio para lá, o que faz com que boa parte de seus impostos sejam destinada para a prefeitura local. Segundo os governantes, a nova leva de dinheiro custeia boa parte dos 12 milhões de euros que o novo sistema deve tirar do orçamento público. O resto deve vir de um aumento no valor cobrado por vagas em estacionamentos públicos nas regiões centrais da cidade.

Em março do ano passado, antes de o projeto ser aceito, a cidade passou por um plebicito para decidir se alterava o sistema de transportes. Cerca de 20% dos eleitores locais participaram, e a proposta de gratuidade venceu por 75%.

Os críticos da proposta dizem que o sistema deve onerar os cofres públicos e não passa de oportunismo político, para ajudar o atual prefeito, Edgar Savisaar, a ganhar as próximas eleições. Uma parte dos usuários reclama da lotação dos novos ônibus, que estariam cheios de mendigos. Mas o público em geral parece não concordar. Após quatro meses de implantação, o uso de ônibus subiu 12,6% na cidade e o de carros caiu 9%.

Keila, uma pequena cidade de 10.000 habitantes situada a 30 quilômetros de Tallinn, foi a primeira a copiar o projeto — já em fevereiro deste ano. O governo da Estônia diz estar avaliando a iniciativa. Cidades como Vilnius, Riga e Helsinque, capitais de Lituânia, Letônia e Finlândia, já disseram estar acompanhando de perto os resultados do novo sistema de mobilidade urbana. Com todo mundo de olho, o resultado da experiência pode ser tanto um fracasso retumbante quanto significar uma nova era para o transporte nas grandes metrópoles.

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